RESUMO
Este artigo analisa o Projeto de Lei n.04/2025, que propõe uma ampla atualização do Código Civil brasileiro, com ênfase na criação do inovador Livro VI dedicado ao Direito Digital. São discutidas as alterações significativas propostas pela Comissão de Juristas, que incluem a modificação ou revogação de 1.122 artigos e a adição de 300 novos dispositivos. O estudo examina os dez capítulos do Livro VI, abordando questões como a proteção de dados, direitos da personalidade no ambiente virtual, patrimônio digital, contratos eletrônicos e diretrizes para sistemas de inteligência artificial. O trabalho avalia criticamente a sobreposição com microssistemas jurídicos existentes, como a LGPD e o Marco Civil da Internet, ao mesmo tempo em que reconhece a necessidade de uma regulamentação coesa das relações jurídicas no ambiente digital.
Palavras-chave: Código Civil. Direito Digital. Projeto de Lei n.04/2025. Inteligência Artificial. Contratos Eletrônicos. Assinaturas Eletrônicas.
1 INTRODUÇÃO
Não será uma simples reforma do Código Civil, ao contrário do que dizem, mas uma revolução no Direito Privado Brasileiro, a considerar o Projeto de Lei n.04/25, em trâmite no Senado Federal. Caso aprovada a proposta, serão modificados/revogados 1.122 artigos e, ainda, serão acrescidos 300 novos artigos no novo ordenamento jurídico (BRASIL, 2025).
É o caso da criação do Livro VI – Direito Digital, o qual inova no ordenamento jurídico ao introduzir o artigo 2027 A. Segundo se verifica da justificativa do projeto, o Livro de Direito Civil Digital ilumina a necessidade de atualizar a legislação brasileira para abordar os desafios e oportunidades apresentados pelo ambiente digital, visando fortalecer o exercício da autonomia privada, preservar a dignidade das pessoas e a segurança de seu patrimônio.
2 A INTERSEÇÃO COM MICROSSISTEMAS JURÍDICOS EXISTENTES
Há uma crítica de que muito do que se propõe nos capítulos do referido Livro VI (pessoa no ambiente digital), já consta de microssistemas próprios, como exemplo citamos a Lei Geral de Proteção de Dados – Lei n.13.709/2018, que estabelece de forma pormenorizada toda a proteção nas relações jurídicas envolvendo dados pessoais e dados pessoais sensíveis e, por conseguinte, a proteção ao direito à liberdade e privacidade (BRASIL, 2018).
Outra legislação que se encontra em vigor e vem gerando discussões é o Marco Civil da Internet – Lei n.12.965, de 23 de Abril de 2014, em especial a questão que envolve a responsabilização dos provedores de aplicação de internet, objeto do Tema 987 em julgamento no STF, onde se discute a constitucionalidade do artigo 19, também alvo do projeto de reforma do Código Civil (BRASIL, 2014; BRASIL, 2021b).
Na proposta as plataformas digitais podem ser responsabilizadas administrativa e civilmente, neste caso de forma objetiva, inclusive por conteúdos gerados por terceiros cuja distribuição tenha sido realizada por meio de publicidade na plataforma e, também, por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros, quando houver descumprimento sistemático dos deveres e das obrigações previstas no livro proposto.
3 FUNDAMENTOS DA PROPOSTA DE ATUALIZAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL
O Código Civil atual (2002) é apoiado em três princípios basilares, quais sejam: eticidade, operabilidade e sociabilidade (REALE, 2002); porquanto, a proposta é justificada ou melhor fundamentada, na retórica da atualização do atual Código Civil que já conta com mais de 20 anos, observando a jurisprudência e doutrina, em especial das Jornadas do Conselho da Justiça Federal e na jurisprudência do STF e STJ para proceder a correção de falhas e inserir novos dispositivos adequados a realidade constitucional vigente (CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL, 2024).
Consoante justificação apresentada pela Comissão de Juristas encarregada de propor a atualização do Código Civil, em especial da criação do Livro de Direito Digital, argumentam que as relações e situações jurídicas digitais já fazem parte do cotidiano do brasileiro e tornaram premente o delineamento do Direito Civil Digital, como Livro autônomo do Código Civil, em face da evidente virada tecnológica do direito, de modo a agregar inúmeras interações de institutos tradicionais e de novos institutos. A pandemia da COVID-19 potencializou e fez aflorar tal necessidade.
4 ESTRUTURA E CONTEÚDO DO LIVRO VI – DIREITO DIGITAL
O livro VI – Direito Digital é dividido em dez capítulos, compreendendo: as bases do Direito Civil Digital; os diversos direitos das pessoas; situação jurídica digital; o direito a um ambiente digital seguro e transparente; patrimônio digital; proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital; diretrizes para o desenvolvimento e implementação de sistemas de inteligência artificial; a validade e os princípios dos contratos celebrados digitalmente; as modalidades de assinaturas eletrônicas e a estrutura para a realização de atos notariais eletrônicos (BRASIL, 2024).
4.1 Bases do Direito Civil Digital
O primeiro capítulo estabelece as bases do Direito Civil Digital, trazendo princípios, fundamentos e alguns conceitos, com foco na proteção da dignidade, privacidade e propriedade no ambiente digital. Este capítulo articula os fundamentos do Direito Civil Digital, sublinhando o respeito à privacidade, à liberdade de expressão e à inviolabilidade da intimidade, ao mesmo tempo em que promove a inovação e a acessibilidade digital.
Vale destacar a conceituação de ambiente digital, como sendo o espaço virtual interconectado por meio da internet, compreendendo redes mundiais de computadores, dispositivos móveis, plataformas digitais, sistemas de comunicação online e quaisquer outras tecnologias interativas que permitam a criação, o armazenamento, a transmissão e a recepção de dados e informações.
4.2 Direitos das Pessoas no Ambiente Digital
No segundo capítulo, a lei aborda os diversos direitos das pessoas, tanto naturais quanto jurídicas, no ambiente digital, realçando a proteção de dados, a garantia dos direitos de personalidade e a liberdade de expressão. Este capítulo também trata da responsabilidade civil e dos critérios para aferir a licitude dos atos digitais.
Consoante mencionado acima, o texto reporta alguns direitos já previstos na Lei Geral de Proteção de Dados, especialmente sobre a manutenção dos dados pessoais e dados pessoais sensíveis sem finalidade justificada.
Outro direito previsto, diz respeito a pessoa poder requerer a exclusão permanente de dados ou de informações a ela referentes, que representem lesão aos seus direitos de personalidade, diretamente no site de origem em que foi publicado. O STF apreciou recentemente o chamado direito ao esquecimento por meio do Tema 786, onde estabeleceu que a ideia de um “direito ao esquecimento” é incompatível com a Constituição Federal, devendo haver a ponderação entre a liberdade de expressão e a proteção da intimidade e privacidade (BRASIL, 2021a).
Há, ainda, inserido no mesmo capítulo a possibilidade da pessoa requerer a aplicação do direito à desindexação, que consiste na remoção do link que direciona a busca para informações inadequadas, não mais relevantes, abusivas ou excessivamente prejudiciais ao requerente e que não possuem utilidade ou finalidade para a exposição.
4.3 Situação Jurídica Digital
O terceiro capítulo define o que constitui uma situação jurídica digital, estabelecendo como tais situações devem ser regulamentadas.
Considera-se situação jurídica digital toda interação no ambiente digital de que resulte responsabilidade por vantagens ou desvantagens, direitos e deveres.
Esclarece, ainda, que as interfaces de aplicações digitais deverão possibilitar às pessoas a escolha livre e informada das transações realizadas no ambiente digital, não podendo ser projetadas, organizadas ou operadas de forma a manipular as pessoas, em violação à boafé objetiva e à função social.
4.4 Ambiente Digital Seguro e Transparente
No quarto capítulo, a legislação assegura o direito a um ambiente digital seguro e transparente, ressaltando a importância de práticas de moderação de conteúdo que respeitem as liberdades individuais e liberdade de expressão.
As práticas de moderação de conteúdo devem respeitar a não discriminação e a igualdade de tratamento, a garantia da liberdade de expressão e a pluralidade de ideias, facilitando a prevenção e a mitigação de danos.
Nesse sentido, as plataformas de grande alcance deverão se submeter a auditorias anuais e independentes para avaliar o cumprimento de todas as obrigações previstas no presente capítulo.
4.5 Patrimônio Digital
O quinto capítulo detalha o conceito de patrimônio digital e estabelece diretrizes para a gestão e transmissão hereditária de ativos digitais, além de discutir o tratamento de dados e informações pessoais no contexto digital.
Considera-se patrimônio digital o conjunto de ativos intangíveis e imateriais, com conteúdo de valor econômico, pessoal ou cultural, pertencente a pessoa ou entidade, existentes em formato digital.
É importante ressaltar que o assunto não deve ser interpretado de forma excludente em relação ao previsto nos direitos da personalidade ou sucessões.
4.6 Proteção de Crianças e Adolescentes no Meio Digital
O sexto capítulo foca na proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital, exigindo que os provedores adotem medidas para garantir seu livre desenvolvimento dentro deste ambiente, o que inclui a verificação da idade dos usuários e a garantia do acesso a conteúdos apropriados, entre outros pontos, ratificando os termos da legislação especial – Estatuto da Criança e Adolescente – Lei n.8.069, de 13 de Julho de 1990.
4.7 Diretrizes para Sistemas de Inteligência Artificial
O sétimo capítulo estipula diretrizes para o desenvolvimento e implementação de sistemas de inteligência artificial, enfatizando a não discriminação, a transparência e a responsabilidade civil, assim como a definição de regramentos para a criação de imagem de pessoas vivas e falecidas por meio de IA.
Nesse aspecto, o desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial deve estar em conformidade com os direitos fundamentais e de personalidade. Isso implica a necessidade de criar sistemas de IA que sejam seguros e confiáveis, beneficiando tanto pessoas quanto instituições, além de fomentar o avanço científico e tecnológico.
No tocante à interação das pessoas com sistemas de IA, o Livro assegura que as pessoas têm direito à informação sobre como interagir com esses sistemas e como as decisões automatizadas podem influenciar diretamente seus direitos ou interesses econômicos.
Por outro lado, tramita agora na Câmara dos Deputados o PL n.2338, de 2023, autoria do Senador Rodrigo Pacheco, que dispõe sobre o uso da inteligência artificial. Nesse aspecto, acredito que a proposta do capítulo em referência seja de mero norteador ou mesmo cláusula geral, deixando para o microssistema da IA os regramentos específicos.
4.8 Contratos Eletrônicos
O oitavo capítulo aborda a validade e os princípios dos contratos celebrados digitalmente, garantindo que eles cumpram os mesmos requisitos legais de contratos tradicionais.
O capítulo evidencia que contrato digital é todo acordo de vontades celebrado em ambiente digital, como os contratos eletrônicos, pactos via aplicativos, e-mail, ou qualquer outro meio tecnológico que permite a comunicação entre as partes e a criação de direitos e deveres entre elas.
É considerado celebrado o contrato digital quando as partes demonstrarem de forma clara a intenção de contratar, podendo a manifestação ser expressa por cliques, seleção de opções em interfaces digitais, assinaturas eletrônicas, ou por outros meios que demonstrem claramente a concordância com os termos propostos, além de atender aos requisitos previstos no artigo 104 do Código Civil vigente e, ainda, os de forma e de solenidade previstos em lei.
O texto define também os contratos inteligentes (smart contract), aqueles nos quais alguma ou todas as obrigações contratuais são definidas ou executadas de forma automática.
Os princípios aplicáveis aos contratos digitais são os mesmos da teoria geral dos contratos, com exceção da imaterialidade (formação e armazenamento em meio eletrônico) e equivalência funcional (os contratos digitais possuem a mesma validade legal que os contratos tradicionais e analógicos, desde que observados os requisitos legais para a sua formação).
4.9 Assinaturas Eletrônicas
No nono capítulo, são definidas as modalidades de assinaturas eletrônicas e estabelecidos os requisitos para sua validade e uso em documentos jurídicos.
São três as espécies criadas, sendo a assinatura eletrônica simples (permite a identificação do signatário), a assinatura eletrônica avançada (aquelas que não são emitidas pela chave pública brasileira) e a assinatura eletrônica qualificada, que se utiliza de um certificado digital, nos termos da Medida Provisória n.2220-2, de 24 de agosto de 2001.
Um ponto que chama atenção no capítulo, que salvo disposição legal em sentido contrário, a validade de documentos constitutivos, modificativos ou extintivos de posições jurídicas que produzam efeitos perante terceiros depende de assinatura qualificada, ou seja, mediante o uso de certificado digital.
4.10 Atos Notariais Eletrônicos
Por fim, o décimo capítulo estrutura normas para a realização de atos notariais eletrônicos, assegurando sua autenticidade, integridade e confidencialidade, legitimando legislativamente um importante provimento do CNJ, que surgiu em um momento de emergência, durante a pandemia, e garantiu que os tabelionatos de notas conseguissem continuar prestando seu importante serviço para toda a população (BRASIL, 2020).
5 CONCLUSÃO
Segundo a Justificativa apresentada no PL n.04/25, o novo Livro representa um passo significativo, colocando o Brasil na vanguarda do tema ao alinhar o direito brasileiro com as realidades do mundo digital, garantindo proteção, transparência e segurança nas interações online, enquanto promove a inovação e respeita os direitos fundamentais no ambiente digital (BRASIL, 2025).
A criação de um livro específico dedicado ao Direito Digital no Código Civil representa um avanço significativo na consolidação normativa das relações jurídicas no ambiente virtual. Embora existam sobreposições com legislações específicas já em vigor, a sistematização proposta pelo Livro VI oferece maior segurança jurídica ao reunir princípios e regras dispersos em um único corpo normativo coeso, servindo verdadeiramente como cláusulas gerais.
Assim sendo, o Projeto de Lei n.04/2025, ao propor a atualização do Código Civil com a inclusão do Direito Digital como parte integrante do ordenamento civilista, reconhece a centralidade que o ambiente virtual assumiu nas relações sociais e econômicas contemporâneas.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº 100, de 26 de maio de 2020. Dispõe sobre a prática de atos notariais eletrônicos. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 27 maio 2020.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002.
BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Marco Civil da Internet. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 abr. 2014.
BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 ago. 2018.
BRASIL. Senado Federal. Comissão de Juristas para elaboração de anteprojeto de atualização do Código Civil. Exposição de Motivos do Projeto de Lei n.04/2025. Brasília, DF, 2025.
BRASIL. Senado Federal. Comissão de Juristas. Relatório Final sobre a Atualização do Código Civil. Brasília, DF, 2024.
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n.04, de 2025. Dispõe sobre a atualização do Código Civil e dá outras providências. Brasília, DF, 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 1.010.606/RJ. Relator: Ministro Dias Toffoli. Brasília, DF, 11 de fevereiro de 2021. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 20 mar. 2021a.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 1.037.396/SP. Tema 987. Relator: Ministro Dias Toffoli. Brasília, DF, 2021b.
CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Jornadas de Direito Civil – Enunciados aprovados. Brasília: Centro de Estudos Judiciários, 2024.
